quinta-feira, 14 de maio de 2015

Igual a você

"O respeito ao próximo – e as suas diferenças – tem de
ser trabalhado pela sociedade." 
Carl Lee (Samuel L. Jackson) é um negro que vai preso após matar dois brancos que estupraram e espancaram sua filha de 10 anos em Canton, no Mississipi. A cidade queria a condenação do acusado. No tribunal, seu advogado branco Jake Brigance (Matthew McConaughey) toma uma atitude que muda o curso da história.

Jake pede que todos fechem os olhos e ouçam. A ele e a si mesmos. Então, começa a contar a história de uma garotinha que volta do armazém. Surge uma picape de onde saltam dois homens e a agarram. Eles a estupram tirando sua inocência com investidas brutais. Depois de terminarem e anularem qualquer chance daquele pequeno útero ter filhos, os dois rapazes começam a usar a garotinha como alvo, acertando-a com latas cheias de cerveja. Não satisfeitos, ainda urinam sobre ela e tentam enforcá-la numa árvore, mas o galho se quebra. Em seguida, eles a jogam na caçamba do carro. Ao chegarem em uma ponte, arremessam-na de cima da mureta. 

Jake pede aos presentes que imaginem o corpo daquela garotinha – estuprado, espancado, massacrado, ensopado da urina, do sêmen deles e do próprio sangue. E, depois, abandonado para morrer… O advogado aguarda um pouco, fixa o júri caucasiano e dispara: “Agora, imaginem que essa garotinha é branca!”

Esse é o trecho quase final da trama de “Tempo de Matar”, um filme norte-americano de 1996. O desfecho deixa cristalina a prática de cultivar valores diferentes dependendo da cor e da classe social. O preconceito racial não desapareceu do Brasil em 13 de maio de 1888, com a abolição da escravidão. 

A lama do deplorável período escravagista persiste em inúmeras provas da discriminação. Em todo lugar, sob os mais variados disfarces e níveis de crueldade. A hipocrisia de negar a existência de preconceitos no País e o fato de haver um feriado em homenagem ao Dia da Consciência Negra não muda os flagrantes abusos que se repetem no cotidiano.

Negros e asiáticos estampam senhas indicativas de suas origens. Nos primeiros, é a cor da pele. Nos segundos, são os traços orientais chamados de olhos “puxados” ou “rasgados”. Conheço bem o significado do preconceito racial. Tanto eu, brasileiro, quanto meus pais e avós – imigrantes japoneses – sentimos na carne as estocadas da discriminação. 

Foi quando aprendi a principal lição dada pelos meus ancestrais. Apesar das circunstâncias adversas, ensinavam – a mim e a meus irmãos – a amarmos o povo brasileiro que nos acolheu. E nos mostravam que as diferenças físicas, culturais, socioeconômicas, quaisquer que fossem, nunca estariam acima dos valores morais e dos princípios éticos de ser humano.

Incorporamos o conceito de que a igualdade, o respeito às diferenças, a justiça, a solidariedade, a gratidão e a dignidade são premissas para o direito à vida. Toda discriminação, portanto, é uma estupidez. Vou mais longe. O preconceito está além da raça, da cor da pele, do formato dos olhos, do credo, da idade, da cultura. 

Acredito que o maior e mais grave preconceito existente no Brasil é o social. A discriminação contra quem é pobre ou aparenta ser é latente. Até o vestuário e a aparência sofrem demonstrações de intolerância. A comunidade nipo-brasileira foi saindo da mira de gente preconceituosa à medida que avançou na escala socioeconômica. Tanto que, em 2000, fui o primeiro nikkei eleito prefeito de Mogi das Cruzes – Cidade com, então, 440 anos de fundação, e cerca de 8% da sua população formada por nipo-brasileiros. Fui reeleito quatro anos depois. 

Também é verdade que as práticas preconceituosas e outros crimes tendem a se agigantar se a pessoa é negra e pobre. Jovens (12 a 29 anos) negros são duas vezes e meia mais vítimas de homicídios do que os brancos, segundo pesquisa, divulgada neste mês, por Unesco, governo federal e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, são negros 75% dos jovens que tiveram morte violenta, como mostram dados do Mapa da Violência (2010).

Num País como o nosso, nascido da pluralidade racial e da diversidade de culturas, com a grande maioria dos habitantes mal ganhando para seu sustento, ser intolerante com gente pobre e de diferentes bagagens raciais ou religiosas é o cúmulo do antagonismo. 

O respeito ao próximo – e as suas diferenças – tem de ser trabalhado pela sociedade. Isto vale para escolas, para o lar, organizações sociais, iniciativa privada e também para o Poder Público. Cada um de nós, como cidadãos, em todas as circunstâncias que a vida nos proporciona, temos de rechaçar, de forma verbal e na prática, a discriminação de qualquer tipo e fazer valer a igualdade entre os seres humanos, lembrando que somos uma única família – a de exemplares humanos. 

Por isso, enquanto prefeito de Mogi das Cruzes, instalamos as Praças Zumbi dos Palmares e a da Mesquista (Antônio Ferri) – em homenagem à cultura afro-brasileira e à comunidade islâmica, respectivamente, além de construir o Parque Centenário da Imigração Japonesa e apoiar a realização de eventos religiosos, como a Festa do Divino Espírito Santo, dos católicos; a Marcha para Jesus, dos evangélicos; entre outras ações. Tudo, como parte das políticas públicas para valorizar nosso perfil multirracial, a diversidade cultural, as múltiplas tradições e crenças. Temos de fazer, com vontade, nossa parte na luta contra as discriminações de qualquer espécie. Para quem tem dificuldade de lidar com as diferenças, fica o argumento do advogado do filme: imagine que o outro é igualzinho a você.

Junji Abe é líder rural, foi deputado federal pelo PSD-SP (fev/2011-jan/2015) e prefeito de Mogi das Cruzes (2001-2008)

Crédito da foto: Arquivo/Antônio Araújo-Agência Câmara

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